O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assumiu ao longo do terceiro mandato o posto de articulador mais ativo, dentro dos Brics, de uma ordem econômica que prescinda do dólar como referência. Enquanto Rússia, China, Índia e África do Sul evitam declarações enfáticas, o brasileiro tem sustentado publicamente a defesa de pagamentos em moedas locais, tema que ganhou força na cúpula do bloco realizada em 18 de agosto de 2025, no Rio de Janeiro.
Pressão norte-americana
A postura de Lula ocorre em meio à escalada de tensões com Washington. Em carta, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump comunicou ao Palácio do Planalto a aplicação de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, medida interpretada por analistas como sinal de que o Brasil precisará se posicionar num cenário geopolítico polarizado.
“Lula tornou-se porta-voz da narrativa de substituição do dólar, algo que nem mesmo outros líderes do grupo sustentam publicamente”, disse o mestre em Relações Internacionais Cezar Roedel. Segundo ele, a ideia é impulsionada pelo assessor especial Celso Amorim e parte de uma leitura “antiquada” da geopolítica, já que cerca de 90% das transações cambiais globais e quase metade do comércio mundial de mercadorias continuam lastreados na moeda norte-americana.
No comércio brasileiro, o dólar representa mais de 95% das exportações e 81% das importações, informa a Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).
Interesses de Moscou e Pequim
Apesar do silêncio público, Rússia e China se beneficiariam de um sistema que reduzisse a dependência do dólar. Moscou enfrenta sanções internacionais desde a invasão da Ucrânia, enquanto Pequim almeja ampliar o uso do yuan. Ambos já criaram canais de pagamentos alternativos e realizam trocas em moedas locais, mas é Lula quem lidera o discurso contra a hegemonia americana.
Utilidade política interna
Para o cientista político Adriano Gianturco, do Ibmec-BH, o tema tem mais valor doméstico que viabilidade econômica. “O discurso serve para reforçar alianças ideológicas e projetar influência no chamado Sul Global, mas o alcance é limitado”, afirmou.
Antecedentes de um projeto antidólar
O histórico não é recente. Em 2008, Brasil e Argentina lançaram o Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML), ainda em funcionamento. Em 2024, o mecanismo movimentou R$ 3,3 bilhões em exportações brasileiras para o mercado argentino.
A guinada ganhou força em abril de 2023, quando Lula, em Xangai, questionou: “Por que todos os países precisam comercializar lastreados no dólar?”. O projeto Brics Pay, anunciado como possível alternativa ao sistema Swift — do qual a Rússia está suspensa — segue em fase de estudos sem implementação robusta.

Imagem: Ricardo Stuckert
Incidentes que agravam a crise
A retórica antidólar somou-se a episódios que incomodaram Washington, como a autorização para atracagem de navios de guerra iranianos no Rio de Janeiro, em março de 2023, e o pouso, em agosto de 2025, de um avião cargueiro russo Ilyushin IL-76 operado por empresa sancionada pelos EUA. A falta de explicações fortaleceu críticas de parlamentares da oposição.
O deputado Marcel van Hattem (Novo-RS) classificou a postura do governo como “irresponsável”, enquanto o Coronel Armando (PP-SC) apontou o apoio a regimes autoritários como causa da deterioração do diálogo com os EUA. Para Luiz Lima (Novo-RJ), Lula “repete a receita” que levou à crise venezuelana.
País-pêndulo sob pressão
Brasil e Índia são vistos como “países-pêndulo” por não se alinharem automaticamente a grandes potências. Analistas avaliam que as tarifas de Trump pressionam Brasília a definir posição mais clara. Roedel sustenta que o tarifaço já dificulta a coordenação econômica dentro do próprio Brics.
Lula, por sua vez, afirma buscar boa relação com todos: “O Brasil gosta dos Estados Unidos, gosta da China, gosta da Rússia”, declarou em vídeo recente, no qual aparecia plantando uma muda de uva e dizendo “plantar comida e não ódio”.
Enquanto o impasse se prolonga, a pauta da desdolarização segue sem cronograma concreto, mas com o presidente brasileiro à frente da retórica que questiona a supremacia da moeda norte-americana.
Com informações de Gazeta do Povo